A mesa impecavelmente arrumada é herança dele, meu pai. Eram outros tempos, havia em cima dela uma máquina Remington, um bloquinho de papel, uma caneta Parker 51, tinteiro, mata-borrão, grampeador, furador, clips e elásticos que, em Minas, chamamos de gominha. Havia também um lápis Johann Faber número 2 e um apontador, uma tesourinha e uma régua e um compasso, tudo minuciosamente nos lugares. É com esta lembrança que começo mais um dia de pandemia lá fora. Os hospitais transbordando, médicos correndo pra lá e pra cá, aparelhos apitando, piscando em verde e vermelho. Máscaras, luvas, roupas de plástico, verdadeiros astronautas cujas vidas ultrapassam. Os rostos marcados pelo elástico, o Nobel da Paz para todos eles, sem discussão. Enfermeiros, enfermeiras, técnicos, motoristas, faxineiros. A tensão maior não durou alguns dias, tem mais de três meses que as duas torres gêmeas estão caindo todos os dias. Na rua não pode ter gente e tem. O comércio tem de estar fechado e está funcionando a meia porta. A máscara tem de cobrir a boca e o nariz e está cobrindo o queixo. Precisamos de um presidente da República e não temos. Precisamos de respiradores e estão acabando. Precisamos de leitos de UTI e estão lotados. Precisamos respirar e falta ar. Será que a única coisa em ordem neste país é uma escrivaninha?