A gente só ficava em casa quando o termômetro de mercúrio ameaçava registrar trinta e nove graus. Minha mãe pedia pra gente abrir a boca, colocar a língua pra fora e falar A. Ela examinava por alto e dava o veredito: “Tá inflamada!” Ela abria o estojo Johnson & Johnson de primeiros socorros, pegava um comprimido de Melhoral, dava um banho morno na gente, vestia o pijama e fazia uma sopinha. Ligava pro Doutor Aldo Casilo, que recomendava um remédio cor de rosa com gosto de chicletes que a gente tomava e começava a melhorar. A gente só ficava em casa quando, nas férias, chovia lá fora, sem parar. Brincávamos dentro de casa fazendo estradas imaginárias que saiam do quarto, pegavam o corredor, avançavam pela copa e chegavam à sala de visitas. A gente só ficava em casa de noite, quando o perigo chegava com a escuridão e menino não ia correr risco de topar na esquina com o homem do saco ou coisa parecida. A gente só ficava em casa quando organizávamos uma pelada no terreiro, quando resolvíamos lavar o pombal, na hora do Rin-Tin.Tin, quando minha mãe colocava a comida na mesa. A gente só ficava em casa quando, no vigésimo primeiro dia, os ovos começavam a rachar e os pintinhos colocavam o bico pra fora. Havia uma expectativa em saber quantos iriam eclodir. A gente só ficava em casa quando ouvia aquele menininho com uma vela na mão cantando já é hora de dormir, não espere a mamãe mandar. Minha mãe vinha e cobria a gente com o cobertor Parahyba e, cansados de guerra, pegávamos no sono na certeza de que amanhã seria um novo dia.